Um euro e quarenta

Não é justo permanecer. Aqui, pelo menos, não o é. Como hei-de eu ver justiça no meio de nós, pobres homens do acaso indefinido, da vontade desconhecida – esse tal «ser para a morte» como diria Ricardo Reis – de alguém por nos trazer ao mundo? Não. Nisso, eu não posso crer. Aliás, ninguém o pode. Só uma pessoa que não se preze é que o fará. (E desses tantos há!)

Entretanto, vem uma freira sentar-se a meu lado. Educadamente, pede permissão p’ra se sentar, digo eu, claro, faça favor, e ela agradece desejando boa tarde. Estaria, provavelmente, muito nervosa, o rosto pálido e inseguro pelo menos assim fazia crer, e pergunta-me, vai dar ao Porto não vai? Sim, respondi-lhe. O terço na mão, muita fé à mistura, pois poderá acontecer um azar dos diabos neste viagem e, quem sabe, a morte não nos bata hoje à porta. E a mulher lá ia rezando ave marias, pai nossos, o que fosse, cheia de convicção que alguém do outro lado escutasse suas preces…

Duro no cismo de olhar lá para fora sem perceber o que são os sentimentos, a compaixão… Será que temos compaixão uns pelos outros? Afinal: qual de nós, aqui, no mundo, é superior ao outro? O mais rico? O mais inteligente? O mais corajoso? Quem pode ousar achar-se superior a mim ou, ao invés disso, achar-me eu superior a alguém? Ninguém!
E este sofrimento que me esbate agora, neste preciso momento, é talvez um sinal de que a realidade com que temos de lidar não é justa, e que não vale a pena permanecer. Uma senhora cometeu, veja-se bem, a loucura de viajar sem dinheiro na algibeira… O crime do século vinte e um cometido ali, por uma velhinha inofensiva, curvada da idade, que sempre vivera na miséria.

O revisor começou a elevar o tom de voz. Elevou-o de tal ordem que o comboio despertou e tudo admirou aquilo. Mas dirigiu-se à senhora com um desdém e uma altivez singulares, repetindo-lhe, até à exaustão, é um euro e quarenta, já lhe disse, é um euro e quarenta. Não paga? Chamo a polícia, tem de pagar um euro e quarenta! Lívida e sufocada de tantas lágrimas e de tanto suplicar, de nada lhe adiantou, saiu numa qualquer estação que não a que pretendia. E eu disse para mim mesmo: não há compaixão nenhuma; somos raivosos e egoístas. 

Todo aquele aparato sumira. E o revisor, enérgico e convencido que fez o que estava certo, gabava-se a um passageiro do seu feito, então não sabe validar o cartão nem que tem que pôr um euro? Nada disso, pode ter um handicap físico, mas aqui dentro é assim.

E fez-se o silêncio da vida no meu coração destroçado.

Álvaro Machado – 19:30 – 14-04-2014

Comentários

Mensagens populares