Liberdade na cidade


Leio Dostoiévski. Fumo um cigarro, leio-o, e, esporadicamente, volto-me para tomar consciência do meio: o sol convida todo o tipo de pessoas a amontoar-se pelas ruas da cidade do Porto. Muita luz e música hão-de entreter tantas frontes indecisas. Até há bem pouco tempo seriam rostos mórbidos, pálidos (deve ser da crise, afinal de contas o português já não sorri como sorria nem conversa como conversava…); agora, voltam à normalidade.

Todo o homem, inda assim, só assume que é louco através da arte. Só lendo Dostoiévski e saboreando a volúpia da vida boémia se é completamente livre: sem medos, eis-nos livres dessa sociedade mesquinha! Nem que, para isso, seja preciso tomar o caminho inverso ao que seria o do nosso próprio bem; o que interessa, aqui, é somente romper, romper com tudo, virar tudo às avessas, esquecer o que é correcto e o que não é, o justo, o injusto, mas afinal quem somos nós para decidir tal coisa? Nada. Não somos absolutamente nada.

Portanto, deixemo-nos de clichés. Entretanto, como que apelando à inércia dos meus dias, esqueço essa temática e precipito-me para o convés – outro cigarro, e outro, e mais outro, até chegar a um estado de consciência que observa minuciosamente cada passado dado em minha volta: o zumbir dos colares, o cheiro ainda fresco da tinta dos quadros, o agitado rio na Ribeira, o ar curioso dos turistas, os artistas de rua que se fazem ouvir com guitarras e violinos melódicos, as gaivotas a sobrevoar-nos, e o sapateiro. O sapateiro encontra-se estático, frio como uma estátua, move o martelo e, em tom de agradecimento, instiga um barulho entre metais. Aquilo chama realmente à atenção; os transeuntes param, tiram fotografias, dão a sua esmola, ele agradece, eles riem, vêm outros, riem de mesmo modo, volta-se a agradecer, e assim sucessivamente numa espiral quase sem sentido…

Está na hora de ir. Será que faço sentido? Fico de cabisbaixo e ignoro-me. Não porque não valha a pena, mas porque eu não quero valer a pena. Desisto, renuncio. Basta! 

«Sim, esta cidade e estas ruas dão-me uma liberdade tão singular, de verdade! Olho as praças amplas repletas de gente, o céu azul, cruzo-me por entre todos e, aí sim, sinto-me livre e único.»

Álvaro Machado - 02:39 - 25-05-2014

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