Até já.




Neste momento, o meu pensamento está na geração que virá a seguir a mim. Assim, estou certo, que a luta que hoje travo não será em vão. Nem que o sangue hoje derramado seja tido como derrota: é pela vitória que hoje morremos.
Nasci num tempo de ditadura, em que o terrível medo paira por todo o lado, em que os melhores amigos se denunciam uns aos outros por práticas de bruxaria, em que a bebedeira de vinho é para esquecermos que vivemos amarrados a forasteiros e, de vez em quando, como já passou a ritual, lá morrem tristes inocentes sem saber ao menos o motivo da denúncia, numa qualquer praça pública, queimados pelas chamas. São tempos em que viver não é fácil. Eu nunca me rebaixei a ninguém, nem nunca escondi a minha personalidade fosse a quem fosse. Sou sempre eu, seja qual for a circunstância. Quase ninguém diz o que pensa, quase ninguém faz o que gosta, porque, se não estiver a nossa caríssima PIDE em cima do acontecimento, estão os pobres atormentados a denunciar-se uns aos outros, como de costume!
Acabo de vestir o meu uniforme – aquele uniforme que orgulhosamente usei no exército quando fui chamado a combater pela pátria; aquele uniforme que só era usado para lutar pela soberania e pelo território – e acabo de escrever isto:

“Liberdade. Tantos te têm vindo a cantar.
Tantos, entre nós, te têm vindo a desejar
Para as suas vidas, liberdade!

Tantos que se têm sacrificado
Para construir um futuro ao teu lado
Com um ar livre e uma nova cidade!”

Bem, parece que o meu futuro, agora, está traçado. Daqui a algumas horas chegarei ao Terreiro do Paço, estarão lá as tropas reunidas, convocadas pelo poder desmedido, e alguns guardas a proteger o presidente, enquanto outros, provavelmente, estarão ali para intimidar livres-pensadores como eu. Pois bem: eu não tenho medo, nem de os defrontar, nem de lhes dizer que penso!
Em correria rápida, precipitei-me para os militares e ergui o meu protesto bem alto para que todos me ouvissem. Sabia que o poder se movia à base de corrupção e que as medidas, no que tocava ao ensino, eram propositadas para manter este povo inculto. Não sei porquê, mas sabia-o. Entretanto, ouvi um disparo solitário de uma arma. E depois outro. E mais outro. Meia dúzia de homens tirou-me a vida por eu os ter desmascarado ali, em plena praça pública, onde todos os cidadãos poderiam, finalmente, conhecer as verdadeiras intenções destes excelentíssimos senhores.
 
Mas sei que a minha morte não foi em vão. Morri de maneira digna. E morri também porque me recusei sempre a ser um manda-chuva como a maioria dos portugueses. Custou-me a vida, mas as gerações que aí vêm ainda me hão-de agradecer.

Setembro de 1955, Tavira.

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