Guerra colonial
É vulgar que a guerra
ainda permaneça na minha cabeça. Recordo-me perfeita e lucidamente do momento
em que havia sido alistado no exército, eu e uns quantos da minha região, que,
sem sequer poder dizer não, tivemos de nos apresentar no quartel prontos a defender
a pátria – ou lá como diziam aqueles fascistas do poder, que meteram na cabeça
que as colónias durariam até à eternidade. Lá embarcamos rumo a Luanda. Não
sabíamos bem para o que íamos: uns carpinteiros, outros agricultores, eu mesmo…
que preparação tinha eu para defrontar quaisquer obstáculos ou inimigos que
surgissem? Nenhuma; nem tampouco manejar uma arma, quanto mais dispará-la e
tirar a vida a alguém.
Era algo que me perturbava horas a fio no convés… tirar a vida a alguém que não me fez mal absolutamente nenhum, que atitude tão ignóbil de tomar! Pelo que, a guerra, a infeliz situação a que nos obrigaram a contemplar, foi, para mim, um descortino claro do quão mau pode ser o íntimo do ser humano – pois eu, bem, eu vi crianças esvaídas em sangue, vi-as fugir em massa, famílias inteiras, mãe, pai, filhos, tudo isso, a fugir pelo rio em direcção ao outro lado, e os soldados disparavam, sem piedade, sobre eles, até os corpos ficarem à tona da água e até que a própria água fica-se avermelhada. Chamar-nos-emos de quê, a não ser de más pessoas?
Agora, bem podia estar
a dormir. E não estou, porquê? Passo noites em brancos, com os ouvidos a
zumbir, é como se inda os ouvisse a gritar antes de serem alvejados, depois o
silêncio assustador, mais uma granada, outra explosão, homem ferido, preto
morto… Às vezes, de tão velho e só que estou, mal pressinto um pequeno barulho
insignificante ou um bater de asas de uma ave ou um canto sinistro de uma
coruja, carrego a arma, disparo para o ar, e fico, por momentos, a tremer
compulsivamente. Depois, acendo um cigarro, tento-me acalmar e vou dormir. Até
que os remorsos e os sentimentos recalcados me invadem o sono de uma maneira
impiedosa, constrangedora, e me fazem levar as mãos a cabeça: por que fiz isto?
Saí de casa, vesti a farda, jovem, esbelto e convicto que ia defender o meu
país…
E então, o que fiz eu?
Decidi esquecer que me haviam alistado no exército para voltar a ter uma vida
decente, com um trabalho que sustentasse a família e que me desse alguma paz
interior. Mas, depois disso, eu soube que o passado não se apaga e que deve ser
relembrado – o que fomos ontem e o que somos hoje e o que seremos amanhã. Ontem
fui soldado, hoje sou um baú.
Orionte - 02:07 - 16-04-2014
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