"A guerrilha nunca se vence"



Inconscientemente retomei os almoços no restaurante - digo inconscientemente porque foi imprevisto e em cima da hora. Fazia-me falta aquele espaço, confesso. Entrámos bem dispostos, como seria de esperar, e o ambiente parecia-nos bastante acolhedor: a sala estava praticamente vazia, o dono enófilo, ele próprio, estava sentado numa mesa a conversar, por não haver clientela. (Fosse talvez do temporal que afugentara os habituais clientes...)
Sentámo-nos na mesa habitual.
- O costume, por favor, e bem quentinho - disse Orioente.
O temporal acalmara entretanto; pouco a pouco chegavam clientes e a sala enchia.
Eu, como não tenho hábito de olhar quem entra e quem sai, por simplesmente não ser da minha conta, continuava atento às histórias e às experiências vividas por Orioente.
- Numa guerrilha ninguém vence e todos sofrem - Oriente puxou a conversa e continuou -, porque somos tão animais e tão brutos como um leão enfurecido ou como um elefante revoltado, e quem pensar que por dentro somos réis está bem enganado...
Tão bom de conversar aquele momento! Por momentos conseguimos viajar aos tempos do ignóbil Salazar e das suas colónias, o restaurante tornara-se assim selvagem, repleto de árvores cheias de vida, e lá íamos feitos soldados que não éramos conquistar terras que não tínhamos e matar inimigos que não odiávamos... (Numa guerrilha ninguém vence e todos sofrem...)
E continuou Orioente:
- Quando cheguei àquela terra senti não pertencer ali. Na verdade éramos intrusos de águas forasteiras. Quando cheguei vi naqueles rostos negros uma miséria de alma que nenhum de nós poderia alguma vez imaginar, andavam descalços com farpas sob os pés, e uma mantinha cobrindo-se-lhes o corpo esbelto. O que eu vi não eram homens nem mulheres, o que eu vi eram figuras em sofrimento!...
- De facto, nos deixa o coração cheio de remorsos. Agora entendo, Orioente, quando me falam em traumas de guerra.
- Quando voltei para a minha cidade natal não era o mesmo. Andei dias, semanas, até meses, com pesadelos. E tudo pelo meu ente querido, o Marechal Santiago, que morrera ali mesmo à minha frente, em Freitas Mornas. Nunca o esquecerei. - disse Oriente com o rosto caído
- Então? Como era ele, Orioente? - perguntei.
- Como era ele? Ah! Era um homem como os há poucos! Dos lados da Guarda, garbo, sempre bem fardado e conhecido pela qualidade de ser sério e boa pessoa - era por isso que me dava bem com ele.
- E como morrera ele, Orioente? - disse eu muito curioso.
- Morrera precisamente naquela aldeia de Freitas Mornas, terra essa que nunca mais esquecerei. Íamos com o resto do plutão num jipe de guerra para visitar aquela localidade, vê bem que nem armados íamos. De repente, lá o capitão ia distraído quando pisa uma mina, que foi o quanto baste para uma tremenda explosão.
Ele morrera de imediato. “Morrera de simpatia” como dizem quando um soldado, neste caso Marechal, morre com duas granadas de lado a lado. Esvaiu-se em sangue! O meu grande amigo Santigo!
- E como ficaste tu, Orioente? Confesso estar curioso para saber de tudo...
- A espinha arrepiou-se de tal forma que a minha reacção, ou melhor, o meu instinto, foi fugir com toda a força que tinha. Arrastei as pernas, segurei os braços para eles não caírem e o coração quase saia pela boca.
Fugi com toda a minha força! E pensei para mim: Isto não é nosso, não sabemos porque viemos aqui, e por isso tomo como justa a morte do meu amigo. Esqueci a vingança e levei todas as más recordações da bagagem de volta a Portugal.
Voltando da pequena viagem que fizemos ao tempo das colónias, pedi um café como habitualmente peço e rimo-nos disto, porque, agora, já somos homens e mulheres livres para pensarmos o que quisermos.

Álvaro Machado – 15:46 – 19-01-2013

Comentários

Mensagens populares