O diário do arrependimento
Deixo desmurar-se o cerco de onde circunda sempre no mesmo
espaço de espiral o meu futuro: o que me espera garanto não querer saber, sendo
por isso assaz para que roce na eternidade; enquanto que, ao invés de o não
querer saber, projecto o que posso vir a ser, talvez pela impaciência de
permanecer no tempo, e cada projecção que faça não é, de modo nenhum, tão
risonha como parece, o sonho não é tão virtuoso como ilude, o caminho não é tão
preenchido como aparenta…
Este meu viscondado, por outro lado, é imenso: detenho
terras além terra que fazem de mim nobre por índole sem saber porquê; pois
então me seja dada a honra de espalhar o meu nome nos arredores da cidade!
Permitam-me que desfrute de uma visita às praças públicas e que acene ao povo
um gesto nobre de tão nobre que são as heranças: não fará mal a ninguém… Farei
a viagem na Fáeton que me calhou na rifa; ninguém fará outra coisa a não ser
olhar para o luxo que me acompanha desde pequenino. Ah, obrigado pela herança
bem amada!
E, ainda assim, sou um iludido. Porque estou velho para manter os disfarces, de que detesto e repugno todos os santos dias, mas que fazem parte da minha vida – ela própria, um disfarce.
E, ainda assim, sou um iludido. Porque estou velho para manter os disfarces, de que detesto e repugno todos os santos dias, mas que fazem parte da minha vida – ela própria, um disfarce.
Quando era pequeno, queria pertencer à classe alta,
ingressar num curso superior, que milagrosamente me desse de mão beijada
conhecimento, e, enfim, ter uma vida de muitos afazeres e poucos riscos, manter
uma família equilibrada e lépida ao mesmo tempo, passo a passo ir construindo alguma
coisa genuína.
Durante anos, seguia normas e normas e mais normas em vão.
De repente, eis que vejo, com grande clareza, o lado de negação a tudo que
erguia até então: volto àquela hora de êxtase, momento crucial de escolher o
caminho mal acabara o secundário, de seguir ou não seguir para o ensino
superior (por dentro, não sabendo bem como nem porquê, uma voz ergueu-se, clara
e convicta, dizendo-me para largar essa ideia de prosseguir estudos.)
Haveria coisas mais importantes, portanto. Tais como ser um mero comerciante, trabalhar num escritório humilde e de pouco reconhecimento popular, onde, nesse mesmo lugar, preocupando-me mais em escrever excelentes obras literárias do que a trabalhar, eu fosse um pouco mais de mim mesmo.
Haveria coisas mais importantes, portanto. Tais como ser um mero comerciante, trabalhar num escritório humilde e de pouco reconhecimento popular, onde, nesse mesmo lugar, preocupando-me mais em escrever excelentes obras literárias do que a trabalhar, eu fosse um pouco mais de mim mesmo.
Álvaro Machado – 22:21 – 16-05-2013
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