Isabel Jonet e os bifes



Há pouco mais de duas semanas a presidente do Banco Alimentar Contra a Fome, Isabel Jonet, deu uma entrevista à Sic Notícias que me preocupou – e, diga-se, preocupou a inúmeras pessoas – bastante pelo tom e gravidade a que foi sujeita.
A primeira grande afirmação dada na entrevista compara o real com a felicidade: -“ há toda uma concepção de vida e de necessidade permanente de bens e consumo para uma satisfação das pessoas que conduz à felicidade que não é real”, disse. Nos dias que correm o consumo, segundo Jonet, não deve ser desenvolvido e muito menos ter essa “concepção” de vida e de necessidade permanente de bens para a satisfação das pessoas porque, assim, estamos a contribuir para a irrealidade e para a vida “acima das possibilidades”. O que me faz confusão é encontrar na população portuguesa esse tom de vida acima do que podemos viver quando os cortes têm sido cegos e por todo o lado, quando o salário mínimo é dos mais baixos da Europa e que se prepara para descer, quando a primeira refeição do dia para muitos crianças é o almoço na cantina, quando a taxa de desemprego em Portugal atinge valores superiores à media da UE, quando há um desequilíbrio claro entre as classes (os pobres e os ricos) que, segundo a Eurostat, em 2010, na Europa, o topo - rendimento monetário líquido equivalente mais elevado – era partilhado por 20% da população, a classe dos ricos, que recebiam 5 vezes mais do que o rendimento base - rendimento monetário líquido equivalente mais baixo – que correspondia à classe dos pobres, e poderia continuar a enumerar estatísticas e mais estatísticas para provar a miséria que Portugal atravessa nos dias que correm. Ultrapassando o limiar da pobreza, o risco de pobreza e de exclusão social em Portugal aumentou bem como em todo o continente europeu.
Porém, Isabel Jonet preferiu adoptar um tom eufemístico para classificar a população portuguesa dizendo que “Em Portugal não existe miséria”, e aí eu entendo que a concepção de vida possa ser irreal, pois, se isto não é a miséria mas apenas um “empobrecimento”, nem quero imaginar os factores e as consequências de viver na miséria…

Mas as afirmações não ficam por aqui. Relativamente à miséria disse: “Se não temos dinheiro para comer bifes todos os dias, não comemos bifes todos os dias. E esse empobrecimento é porque comemos bifes todos os dias e achávamos que podíamos comer bifes todos os dias e não podemos”. Dá que pensar uma declaração destas, ainda mais por ser da presidente do Banco Alimentar Contra a Fome.
Se regredirmos até ao tempo da idade média, em que comer era sinal divino e deveria ser partilhado por todos em poucas quantidades, a coisa de hoje em dia consumir um bife de forma diária parece idiota. Somos todos idiotas por consumir um bife, pois ele deve ser de tal forma idolatrado que não devemos come-lo assim todos os dias. Quem comer um bife todos os dias está a contribuir para viver acima das suas possibilidades. Aliás, quem comer diariamente está a consumir diariamente e com isso está a viver acima do que devemos viver. Se regredirmos novamente e empobrecermos ainda mais, morrer à fome para ser mais directo, pode ser que aí já estejamos a viver conforme as nossas possibilidades e esqueçamos as estatísticas que provam que há portugueses que passam o limiar da pobreza, que têm privação material e alguns que têm privação material severa. Privação material entenda-se um indicador não monetário de condições de vida para medir a exclusão social. Este indicador se tiver a ausência de 3 dos 9 itens de avaliação, existe miséria. A (in)capacidade de fazer uma refeição com carne frango ou peixe de dois em dois dias é um desses indicadores.
Se supormos, por exemplo, que uma família não tem capacidades para ir uma semana de férias, que tem dívidas (ao banco, etc) e que não consegue “comer bifes todos os dias ou de dois em dois” está, então, na miséria.


Para Isabel Jonet, e para a sua visão retrógrada e irreal, nós não estamos nem na miséria nem na pobreza, estamos apenas “a empobrecer”. E se a “
necessidade de voltar a olhar para aquilo que é o mais básico” é viver na miséria imposta pelos governos e pelos cortes cegos, então voltemos à idade média e deixemos os carros para andar a galope, deixemos as roupas para vestir as armaduras, deixemos a paz e voltemos às conquistas!

PS: Caso não esteja presente na sua mente, e caso não saiba, quando as ditas “papas” aumentam a venda consideravelmente é sinal de que existem famílias portuguesas que têm vindo a substituir as refeições como “bifes” por apenas papas. E diz-me isto não ser miséria?

Álvaro Machado – 14:27 – 25-11-2012

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