A génese de um escritor


Temos que decidir. Temos de saber quem queremos ser. Ou então inventamos alguém que gostaríamos de ser, vivemos, assim, com base na suposição, somos o reflexo de um espelho quebrado por um rosto disfarçado, repulsivo à luz, repleto de escuridão...

Queria ser um capitão. Ou aquele poeta na Holanda, preso no tempo (que mais não é que todo o tempo, isto é, o tempo na sua essência), sentado, entontecido pelos seus pensamentos moribundos, a escutar o vento e a achar-lhe direcção...

Melhor: poderia ser Walt Whitman. Oh! O grande Whitman! A divagar por terras americanas e a cantar tudo como nunca ninguém soube cantar! Poderia ser Fernando Pessoa, viver tão lúcido que a minha lucidez passasse a ser minha loucura e onde cada espaço se tornasse numa imensa dúvida do tamanho do universo! Poderia ser Cesário Verde e vaguear pela Lisboa podre do século dezanove, amando cada mulher que passasse, inda que fosse a menos formosa, achava os atributos suficientes para as erguer, sem excepção, numa miragem divina que só ele ousaria cantar calçada abaixo com tamanha inspiração!

Ah, que eu quero ser tudo isso e não sou nada disso! Que destrutivo é pensar assim, desta maneira, nestes termos, com estas divagações cismáticas!...
Agora, abro o meu livro, o meu estimado livro de Bernardo Soares e cito-o na esperança de um dia ver resolvida a minha tremenda indecisão:

«Tenho que escolher o que detesto — ou o sonho, que a minha inteligência odeia, ou a acção, que a minha sensibilidade repugna; ou a acção, para que não nasci, ou o sonho, para que ninguém nasceu.
Resulta que, como detesto ambos, não escolho nenhum; mas, como hei-de, em certa ocasião, ou sonhar, ou agir, misturo uma coisa com outra.?

Álvaro Machado - 00:43 - 31-10-2014

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