abstracta chuva


ali defronte, naquela consentida paragem de tempo, eis que o nosso mestre puxa de um cigarro, acende-o misteriosamente, o fumo começa a subir e a subir cada vez mais até findar pelo indefinido que ninguém há-de nunca compreender.´

chuvisca. e, pouco depois, torrencialmente a água derruba todas as crenças dele. de cabisbaixo, acabou por desistir de tudo aquilo por que até agora havia lutado: fé, amor, alegria, bondade, respeito...
raios me partam. o que é que fiz de mim? por quem me tomei eu? desejei assim tanto? quis tanto da ilusão transparecer em meus dias habitualmente solitários e enfadonhos?

disse, calou de seguida. o silêncio apoderou-se do espaço e do tempo, daquele pequeno intervalo que separa o nosso mestre de todas as leis naturais que o afrontavam... do abismo que o agigantava (caramba, entendam, ele não tinha medo de morrer; aliás, aceitara-o sempre como coisa justa, mais que justa!), das estrelas que, sobre ele, intrigavam, e de que maneira, os seus solilóquios quietos e perplexos.

hei-de morrer, disse. hei-de morrer desprovido de receios insignificantes, impregnado, antes, por uma fria e lúcida consciência de que nada valho e que, portanto, mereço qualquer desfecho do mais cruel que possa emergir desse porvir incerto.
ter sentimentos? ter aspirações? crer? mas crer em quê, em quem? crer na matéria que não atinjo, no universo que não compreendo, nos semblantes que não são nada senão vazios?

sim, hei-de morrer. deixem-me. deixem-me sossegado e aquietado de espírito até que a hora realmente surja, que tanto a desejo, que tanto a abomino, simultaneamente! finalmente hei-de ter um momento só meu, sem que ninguém intervenha, sem que ninguém manifeste (ou opinião, ou sentimento, o que for), sem que ninguém tenha tempo para me puxar o braço e dizer "não, não vás por aí! escolhe o certo!"...

mas que certo? o meu certo é estar errado. o meu fugir da dor é exactamente o sofrer bastante. o meu silêncio é realmente a minha voz. eu, que nem sei quem sou, sou feito de vácuo, indefinição, fel... e descrente na crença do senhor.

Álvaro Machado -19:30 – 29-09-2014

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